Hoje, perdi uma tesoura
Quando eu era criança e estava na primeira série tive uma crise de choro, no meio da tarde, em plena sala de aula.
Tinha uns oito anos de idade, acho. Bateu uma enorme saudade da minha mãe e comecei a chorar. Não consegui segurar o choro.
A tia Mercedes, super carinhosa, me abraçou e perguntou por que eu estava chorando. Com vergonha, menti. Disse que tinha perdido minha tesoura.
Hoje, perdi uma tesoura. De noite, chorei. Cansada. Cheia de frustrações acumuladas dos últimos acontecimentos.
Semana passada, juntou tudo: menstruação, tensão no trabalho, demissão do ministro, renovação do meu contrato de aluguel. Uma paulada atrás da outra.
Até mesmo a mais otimista das criaturas – no caso, eu mesma – não conseguiu manter as boas expectativas em alta. Desabei.
Mas nem todos esses acontecimentos têm importância alguma no dia de hoje. Para mim, até que a vida mude isso, o dia 22 de agosto será sempre um dia triste.
O aniversário da morte do meu pai me pega de um jeito ou de outro. Sempre fico triste, baixo astral, deprimida. Por mais que a vida esteja boa.
Agosto não costuma ser o melhor mês do ano. Hoje mesmo li um texto do saudoso escritor Caio Fernando Abreu com dicas para sobreviver a agosto. Não é fácil.
Nesse mesmo texto o Caio diz para não lembrar dos que se foram. É horrível porque agosto é o mês do dia dos pais e logo em seguida vem o tal dia 22.
Mais importante do que suportar esse mês temível é saber que depois de agosto, vem setembro e com ele, a primavera.
Não se pode dar uma trégua para o mês de agosto, mas também é impossível pular a folha do calendário. Paciência, pede o Caio, muita paciência.... Chega logo setembro!
***
Sugestões para Atravessar Agosto
Caio Fernando Abreu
Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro — e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah!, escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente.
Para atravessar agosto também é necessário reaprender a dormir. Dormir muito, com gosto, sem comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons deixam a vontade impossível de morar neles; se maus, fica a suspeita de sinistros augúrios, premonições. Armazenar víveres, como às vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais, e sem muito critério de qualidade. Muitos vídeos, de chanchadas da Atlântida a Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzsche a Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem: qualquer problema, real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente considere, vagamente onipotente, que isso também passará. Zaps mentais, emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar agostos.
Claro que falo em agostos burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso, angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós. Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz abril, dezembro ou, justamente agosto. Angústia agostiana é coisa cultural, sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos — ou precauções — úteis a todos. O mais difícil: evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile à fantasia, categoria originalidade... Esquecê-lo tão completamente quanto possível (santo zap!): FHC agrava agosto, e isso é tão grave que vou mudar de assunto já.
Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele partiu — sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antônio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista. Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún, ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à luz da lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.
Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se ou lamuriar-se, e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques — tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informação para que as desgraças sociais ou pessoais não deem a impressão de serem maiores do que são. Esquecer o Zaire, a ex-Iugoslávia, passar por cima das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das bandejas de asas de borboletas — coisas assim são eficientíssimas, pouco me importa ser acusado de alienação. É isso mesmo; evasão, escapismos. Assumidos, explícitos.
Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente não se deter demais no tema. Mudar de assunto, digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco.
>>> Publicada originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 1995, a crônica integra a coletânea Pequenas Epifanias (reunião de textos escritos entre 1986 e 1995), lançada pela Editora Agir.
Tinha uns oito anos de idade, acho. Bateu uma enorme saudade da minha mãe e comecei a chorar. Não consegui segurar o choro.
A tia Mercedes, super carinhosa, me abraçou e perguntou por que eu estava chorando. Com vergonha, menti. Disse que tinha perdido minha tesoura.
Hoje, perdi uma tesoura. De noite, chorei. Cansada. Cheia de frustrações acumuladas dos últimos acontecimentos.
Semana passada, juntou tudo: menstruação, tensão no trabalho, demissão do ministro, renovação do meu contrato de aluguel. Uma paulada atrás da outra.
Até mesmo a mais otimista das criaturas – no caso, eu mesma – não conseguiu manter as boas expectativas em alta. Desabei.
Mas nem todos esses acontecimentos têm importância alguma no dia de hoje. Para mim, até que a vida mude isso, o dia 22 de agosto será sempre um dia triste.
O aniversário da morte do meu pai me pega de um jeito ou de outro. Sempre fico triste, baixo astral, deprimida. Por mais que a vida esteja boa.
Agosto não costuma ser o melhor mês do ano. Hoje mesmo li um texto do saudoso escritor Caio Fernando Abreu com dicas para sobreviver a agosto. Não é fácil.
Nesse mesmo texto o Caio diz para não lembrar dos que se foram. É horrível porque agosto é o mês do dia dos pais e logo em seguida vem o tal dia 22.
Mais importante do que suportar esse mês temível é saber que depois de agosto, vem setembro e com ele, a primavera.
Não se pode dar uma trégua para o mês de agosto, mas também é impossível pular a folha do calendário. Paciência, pede o Caio, muita paciência.... Chega logo setembro!
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Sugestões para Atravessar Agosto
Caio Fernando Abreu
Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro — e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah!, escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente.
Para atravessar agosto também é necessário reaprender a dormir. Dormir muito, com gosto, sem comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons deixam a vontade impossível de morar neles; se maus, fica a suspeita de sinistros augúrios, premonições. Armazenar víveres, como às vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais, e sem muito critério de qualidade. Muitos vídeos, de chanchadas da Atlântida a Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzsche a Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem: qualquer problema, real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente considere, vagamente onipotente, que isso também passará. Zaps mentais, emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar agostos.
Claro que falo em agostos burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso, angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós. Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz abril, dezembro ou, justamente agosto. Angústia agostiana é coisa cultural, sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos — ou precauções — úteis a todos. O mais difícil: evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile à fantasia, categoria originalidade... Esquecê-lo tão completamente quanto possível (santo zap!): FHC agrava agosto, e isso é tão grave que vou mudar de assunto já.
Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele partiu — sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antônio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista. Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún, ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à luz da lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.
Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se ou lamuriar-se, e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques — tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informação para que as desgraças sociais ou pessoais não deem a impressão de serem maiores do que são. Esquecer o Zaire, a ex-Iugoslávia, passar por cima das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das bandejas de asas de borboletas — coisas assim são eficientíssimas, pouco me importa ser acusado de alienação. É isso mesmo; evasão, escapismos. Assumidos, explícitos.
Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente não se deter demais no tema. Mudar de assunto, digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco.
>>> Publicada originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 1995, a crônica integra a coletânea Pequenas Epifanias (reunião de textos escritos entre 1986 e 1995), lançada pela Editora Agir.
Querida amiga, apesar da era de "felicidade a todo custo" que estamos vivendo, o agosto é parte da vida. E pra gente que pensa, caso seu, serve sempre pra levar ao melhor, sempre. A saudade te aproxima do seu pai? Que seja! Ela vai e vem!
ResponderExcluirTenha fé, ok?
Beijão
Sim, Myla, muita fé. E paciência! Valeu linda! Beijo
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